De quem é a culpa?

Minha irmã está querendo trocar de carro. Diz que o seu carro dá problema demais. É sempre um defeito aqui, outro ali, e assim por diante. Mas observem só o que aconteceu alguns dias atrás com ela: a mesma ligou para o meu pai d-e-s-e-s-p-e-r-a-d-a dizendo que o carro estava pegando fogo!!!! Evidente que meu pai mandou ela se afastar do carro e pedir ajuda. Perguntou onde ela estava e “voou baixo” até o local. Chegando lá, não encontrou o carro (nem ela) então telefonou para o celular e ela atendeu dizendo que já estava em casa (a 4km de distância dali). Quem em sã consciência dirige um carro “pegando fogo” por 4km? Só em filme.

Na verdade o motor, por falta de água no radiador, ferveu o restante da água existente. A fumaça (vapor d’água) que sai nessa condição ela achou que era fogo, e deu no deu. Claro que o “pequeno erro” dela resultou em prejuízo: teve que trocar a junta do cabeçote e mais algumas coisas. Pequeno prejuízo de mais de R$ 1.000,00

Quando meu pai me contou o acontecido, eu confesso que não me surpreendi. Dez anos atrás, quando ainda estávamos solteiros, peguei o carro da família no “cheiro” de gasolina, mal conseguindo chegar a um posto para abastecer. Quando reclamei com ela (que havida dirigido o carro antes) se não havia notado que o tanque estava vazio, ela disse que “Ah, o ponteiro é assim mesmo. Ele diz que está vazio no começo, mas depois de um tempo ele sobe e fica sempre pela metade”. Na verdade, ela confundiu o medidor de temperatura (que começa lá embaixo – motor frio – e depois sobe – motor quente) com o medidor de combustível. Que grande motorista!

E esta grande motorista está querendo trocar de carro porque o mesmo “dá problema demais”. É óbvio que o problema é ela, não o carro (mas por favor, antes de jogarem pedra nela, reparem nas próprias namoradas, esposas e mães que também dirigem, se elas lembram de cuidar do carro). Se ela lesse o manual do motorista que vem junto com  o veículo saberia onde fica o marcador de combustível e que é necessário verificar o nível de água e óleo de tempos em tempos. Qualquer manual serviria, pois em qualquer automóvel há a necessidade periódica de se verificar água e óleo, combustível, etc. Pode até variar o local das coisas e o tempo entre as verificações, mas todo automóvel funciona do mesmo jeito. Assim, se em algum momento de sua vida ela tivesse lido qualquer manual de veículo, já ajudaria muito. Mas esse negócio de ler o manual…

Meu sogro comprou um notebook recentemente. Ele é representante comercial, e agora quer passar tudo o que ele faz em papel para o computador. Comprou, então foi na minha casa e me falou “me ensina tudo sobre o notebook”. Eu procurei na caixa, achei o manual e disse: “está tudo aqui, no manual”. Só que ele não gostou, reclamou, queria que eu explicasse, não que ele tivesse que ficar “perdendo tempo lendo manual coisa nenhuma” (palavras dele). Eu insisti que era para ele ler o manual e, tendo alguma dúvida, me procurar. Meu sogro foi embora visivelmente chateado, o que me valeu até um início de discussão com a minha esposa, rapidamente encerrada quando eu disse “então leia o manual você e explique para ele. Eu tiro as dúvidas”.

Mas não estamos aqui para falar de carros, nem de notebooks, nem de sogros e esposas, mas sim de sonorização. Mas é igualzinho. Absolutamente ninguém (salvo honrosas e boas exceções) gosta de ler manuais. Mas depois, quando o equipamento dá defeito, o operador costuma colocar a culpa em quem? No fabricante, claro!

Por outro lado, os fabricantes atribuem grande parte dos defeitos a erros de operação, erros dos próprios usuários. Fui em uma palestra do fabricante A, que disse “geralmente quando o equipamento dá defeito, é por erro de operação do usuário”. Outra palestra, outro fabricante, e novamente, a culpa da maioria dos problemas é do usuário. O mesmo com outros fabricantes. Então, de quem é a culpa? O quanto é realmente erro dos usuários, o quanto é erro dos fabricantes? Vejamos alguns casos (dentre muitos, selecionei estes) que tive a oportunidade de vivenciar, para tirarmos nossas conclusões.  

1) Uns conhecidos investiram um bom dinheiro em um sistema de sonorização novo para a igreja. Colocaram um multicabo e levaram a mesa de som lá para trás. Como o multicabo era todo XLR, em ambas as pontas, fizeram cabos especiais para os instrumentos, com uma ponta P10 (para ligar no instrumento) e outra ponta XLR (para ligar na medusa).

Após pouco tempo, os canais onde eram ligados o contrabaixo e o teclado pararam de funcionar. A mesa, uma AMBW de 12, agora só tinha 10 canais funcionando. E mais alguns cultos e os canais onde o contrabaixo e o teclado estavam agora voltaram a queimar. Agora só 8 canais em funcionamento. A culpa, é claro, recaiu sobre a mesa, sobre a Ciclotron. “Bem que eu disse que tinha que comprar uma Yamaha”, disse um. “Ciclotron não presta, Behringer é muito melhor”, disse outro.

Quando me convidaram para assistir um culto (e indicar uma nova mesa para ser adquirida), tomei um susto logo de cara: a luz de pico (Peak) dos canais onde estavam o teclado e o baixo acendiam constantemente, bem forte mesmo. O problema? Os sinais desses instrumentos, muito fortes (entre 1V e 2V), estavam entrando na mesa nas conexões próprias de Microfone, que trabalham com sinais muito menores, tipicamente 0,1 a 0,5V. O resultado não poderia ser outro: a queima dos componentes do canal. Quando falei se não tinham notado a luz vermelha acendendo (impossível não notar), falaram que “achamos que é assim mesmo, para acender”.

Neste caso não há dúvida do que aconteceu. Foi mesmo erro do usuário. Simplesmente ninguém leu o manual – o mínimo que poderiam ter feito. Aliás, quando pedi o manual para mostrar sobre isso, ninguém sabia onde estava, um dos rapazes até mesmo comentou que o manual deve ter sido jogado fora junto com a caixa, no dia em que compraram o equipamento. Situação absurda, mas extremamente comum!

A Ciclotron, fabricante que em nossa opinião faz os melhores manuais do país, deixa bem claro os alertas e perigos. Vejamos:

“AS ENTRADAS DE ALTO GANHO (MIC) são de uso direcionado para microfones e instrumentos musicais de cordas conectados diretamente ao console de audiomixagem, ou através de direct box para fazer o balanceamento. Os instrumentos de cordas, guitarra, violão, cavaco,
etc., captados magneticamente possuem baixo nível de sinal. Se esses instrumentos forem do tipo ativo ou conectados serialmente através de um ou mais pedais de efeitos ou aparelho ativo de processamento destes sinais, convertem-se para alto nível de sinal e, portanto, não devem ser
ligados mais nesta tomada, e sim na tomada LINE

“LED INDICADOR DE PEAK: quando aceso, este led (vermelho) indica que o sinal pré e/ou pós-equalizado do correspondente canal de entrada mono alcança um nível próximo ao nível de saturação do circuito deste canal, o que você não deve deixar acontecer de modo algum. Este indicador alerta que poderá ocorrer saturação deste canal de entrada mono correspondente, antes e/ou depois do fader (controle de volume deslizante (12) do canal). Se o indicador de PEAK se mantiver aceso, é necessário diminuir a sensibilidade de entrada do canal utilizando o controle de ganho (GAIN) (4). Se mesmo assim não houver atenuação suficiente, é necessário reduzir o nível de saída da fonte de programa conectada à entrada deste canal, ou trocar de entrada do canal (da entrada MIC, que é mais sensível, para a entrada LINE, que é menos sensível).” (grifo nosso)

Ou seja: se os usuários tivessem tido o cuidado de ler o manual de instrução do aparelho, teriam visto que a luz de pico acesa indica uma situação anormal, e teriam corrigido a situação antes que houvesse o problema, conforme as instruções presentes no próprio manual. Mas que adianta ter a informação se ninguém a lê, dá a ela seu devido valor?

É incrível que, em plena “Era da Informação”, onde dispomos de tantas ferramentas para tirar nossas dúvidas (internet, e-mail, telefone), ainda existam pessoas que não se importam em ler as instruções, consultar o manual, mandar e-mail para o fabricante, ou mesmo voltar à loja e perguntar o sobre um possível erro.

Nada adianta ter o melhor manual do mundo, o melhor suporte por e-mail, telefone 0800 (sem custo para o usuário), se o usuário não se interessa em procurar informações. Prefere continuar na ignorância! E caso algum problema aconteça, é muito mais fácil jogar a culpa em quem não pode se defender (o fabricante do equipamento).

Um até tentou argumentar que “eu até procurei o manual, mas não achei”. E ele ficou surpreso quando disse que o mesmo se encontra disponível no site da empresa. Argumentei que “surpreso estou eu, que sei que você passa horas no MSN mas não pode visitar o site do fabricante?”

Infelizmente o brasileiro de um modo geral não tem o hábito de leitura de manuais. Na verdade, não temos hábito de leitura nenhuma. Somos um dos países com um dos índices mais baixos de leitura de livros, didáticos ou não, e isso se reflete nos rankings de comparação entre países no assunto, onde estamos sempre próximos aos últimos colocados.

Mas é fácil jogar a culpa do problema em alguém. Reclamamos dos professores quando tiramos notas baixas, mas temos a maior preguiça de ler (e entender) a bibliografia indicada. Quando temos que ler (na maioria das vezes forçadamente) um livro para a escola, para o vestibular, procuramos logo saber se existe versão em filme, como se duzentas ou mais páginas de texto pudessem ser condensadas em 2 horas de filme. Colocamos a culpa no governo, seja pelas péssimas escolas (sim, é verdade, mas uma escola é formada por duas partes, docente e discente, e o desempenho da mesma depende do desempenho de ambas as partes), ou então nos preços dos livros; todos sempre muito caros, ou muito chatos, ou qualquer outra desculpa que inventarmos. Sempre há um culpado, nunca nós mesmo, nunca a nossa própria preguiça.

Quando dou aulas de sonorização, sempre pergunto no primeiro dia de aula quem já leu os manuais dos equipamentos que utiliza. Em geral, menos de 10% dos presentes, ainda que a maioria dos alunos seja formada por gente que já atua no som das igrejas a tempos. A maioria aprende “na prática”, e prefere aprender assim. Mas “aprender na prática” também significa “queimar equipamentos na prática”, e este é o pior jeito de aprender: dói no bolso. Para evitar essa dor na parte mais sensível do corpo humano (o bolso), não era muito melhor ler o manual?

Daqui, tiramos uma primeira lição. Os manuais dos equipamentos tem informações muito úteis, e por isso devem ser sempre lidos, sempre consultados em caso de dúvidas. Mas às vezes isso não é suficiente. Vejamos o próximo caso.

2) Eu comprei uma mesinha da Alto, só para poder usar uns microfones condensadores que também adquiri. Funcionou muito bem, mas 1 ano após a compra (e muito uso depois), 3 dos 6 canais queimaram. E eu confesso: inicialmente também coloquei a culpa na Alto. Que equipamento frágil, imaginei! Consegui até um lojista que também não gostava de Alto, que dava defeito fácil (ao final, descobri que ele apenas concordava por educação). A culpa é do fabricante, não minha!

Mas quando estava pesquisando para escrever sobre o artigo de Phantom Power, vi que existe o perigo do centelhamento. Que, se encaixarmos (ou desencaixarmos) os cabos nos microfones com o Phantom Power ligado, pode haver uma minúscula centelha (assim como existe uma centelha quando conectamos uma tomada de um aparelho na energia elétrica). E esta centelha pode ser fatal para os delicados circuitos integrados dos equipamentos. E então concluí: quem queimou o equipamento fui eu mesmo! Os 3 canais queimados eram exatamente os canais onde eu costumava ligar os microfones condensadores.

Aqui, o problema foi diferente. Eu tenho por prática ler o manual – sempre! Mas observem: não existia alerta sobre o perigo do centelhamento no manual da Alto. O alerta eu li em um manual de uma mesa da Soundcraft. Como o funcionamento do Phantom Power é igual em qualquer equipamento, logo o alerta dado pela Soundcraft também serve para outros equipamentos. E concluímos que o equipamento não é ruim, o erro foi mesmo do usuário. Mas este erro poderia ter sido alertado pelo fabricante, mas não o foi! Temos então um erro de ambas as partes. Do usuário, que não agiu certo perante o equipamento e do fabricante, que não alertou para o perigo.

Assim como há fabricantes e fabricantes, há manuais e manuais. Enquanto alguns manuais são sucintos até demais, outros primam por colocar informações bastante completas. Em geral, fabricantes mais experientes, além de fazerem produtos melhores, também fazem manuais melhores, mais completos, com informações mais precisas. Eles avisam sobre os erros mais comuns porque já tiveram muita experiência de erros de usuários estragando os seus produtos.

Mas aqui fica a nossa próxima lição: se tivermos a oportunidade (e a internet está cheia delas), devemos buscar aprender sobre outros equipamentos semelhantes ao nosso, devemos ler manuais de outros fabricantes de produtos parecidos.

Não devemos nos contentar com somente uma leitura, como se todo o conhecimento necessário estivesse ali. Na verdade, se pegarmos um “pouquinho” de cada fabricante, veremos que as informações se complementam umas às outras. Como no exemplo, foi lendo o manual de um equipamento que eu não tenho (a mesa Soundcraft, que só depois vim a adquirir) que descobri o problema!

3) Um amigo comprou vários microfones dinâmicos AKG. Mas “queimou” (estragou) alguns em uma ocasião, queimou outros depois, até finalmente estragar todos. Segundo ele, AKG não presta, e recomenda a todos não comprar nada AKG.

Alguns meses depois do acontecido tive a oportunidade de visitá-lo e, comentando sobre o problema, descobri que no meio dos cabos dele havia dois cabos de microfones (XLR-XLR) que, em vez de serem feitos com cabos balanceados (2 condutores + malha), foram feitos com cabos coaxiais simples (1 condutor + malha), com o pino 3 interligado ao pino 1. E como ele também tem microfones condensadores, que precisam de Phantom Power, a causa do problema dos AKG estragarem estava clara: uso de cabos fora de padrão, fechando curto, situação em que ou queima o canal da mesa ou queima o microfone! Custou a queima de 8 AKG D2000 para ele aprender isso.

Neste caso, o manual do equipamento pouco ajudou. Apesar de existirem fabricantes que citam o tipo de cabo a ser utilizado junto com microfones (a LeSon é um exemplo), muitos fabricantes só citam características técnicas. São importantes, claro, mas às vezes enigmáticos, como este texto, tirado do manual do próprio AKG D2000:

“Connector pinout:
pin 1: ground
pin 2: audio inphase
pin 3: audio return”

Ou, em português:
“Pinagem do conector:
pino 1 = terra, pino 2 = positivo, pino 3 – negativo.”

Enigmático porque não explica como isso se aplica ao tipo de cabo, e aos possíveis problemas que vão acontecer. Então podemos dizer que é falha do fabricante? Eles realmente poderiam fazer melhor que isso, colocando  uma informação mais completa, aplicando melhor o conceito à prática, e informando possíveis problemas e riscos. Mas não podemos dizer que eles erraram: eles descreveram o seu produto microfone, e o cabo – que não acompanha o produto – não é responsabilidade deles.

Aqui, no caso, não adianta ler o manual do produto, e talvez pouco adiante ler manuais semelhantes de outros produtos. O que vamos precisar aqui é de um operador de som que saiba que é importante para o seu trabalho procurar mais informações do que as que estão a mão. A nova lição é que precisamos ter por hábito pesquisar, estudar, ampliar seus conhecimentos.

Conclusão

Começamos o artigo perguntando de quem é a culpa. E de quem é? Sim, uma grande parcela dos problemas é causada por usuários/operadores inexperientes ou que simplesmente não se prezam a buscar orientações sobre os equipamentos com os quais trabalham.

Mas os fabricantes também não podem fugir à responsabilidade. Se eu fosse fabricante, faria o melhor manual possível, manteria o melhor website possível, repleto de informações úteis. Colocaria os problemas mais comuns, como evitá-los, etc. Quanto mais meus clientes tivessem acesso à informações, menos equipamento retornando para conserto eu teria.

Mas a figura central disso tudo é o operador. Há aqueles interessados, que vão crescer no seu trabalho, mas também uma grande quantidade de desinteressados, que sempre que podem jogam a culpa nos outros.

Sempre digo que uma das características dos bons operadores é serem estudiosos. Estão sempre lendo manuais, procurando informações nos livros/internet, estão sempre buscando se aperfeiçoarem no que fazem.

O que buscamos, neste artigo, é demonstrar isto. O mínimo que se pode fazer é ler o manual do equipamento que se opera. Mas é um hábito extremamente saudável ler outros manuais semelhantes, fazer comparações, etc. E como algumas coisas não estão nos manuais, é necessário ampliar seus conhecimentos com outras leituras, livros, pesquisas, etc.

Um bom operador de som  tem que ter o hábito constante procurar mais informações, novos conceitos, padrões, regras e normas sobre o seu trabalho. Fazer cursos, estar sempre se atualizando, comprando livros, consultando pessoas mais experientes, lojas, os próprios fabricantes, etc. Literalmente, “tem que correr atrás”. Não “atrás do prejuízo”, mas à frente dele: quanto mais sabemos, menos temos problemas, e mais tranquila é a nossa vida.

Muitos operadores de som de igrejas que conheço não são profissionais de áudio (são voluntários nas suas igrejas), tem seus empregos, mas mantém nos seus locais de trabalho os mesmos bons hábitos citados aqui. São todos profissionais de sucesso, pois diferenciam-se da maioria pelo gosto pelo estudo, e com isso o aperfeiçoamento profissional.

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