Uma tragédia anunciada

Já fui o operador de som de mais de 50 casamentos. Acho que já virei PhD em som de casamentos. Eu até criei gosto em cuidar do som nos casamentos. Um casamento é extremamente complicado por várias razões:

– muita gente e muito visitante, gente que nunca entrou em uma igreja e precisa encontrar tudo 100%,
– muitos hinos, e quanto maior a quantidade de hinos, maior a chance de problemas.
– muita complicação. O pessoal costuma exagerar nos casamentos: certa vez, havia 40 cantores no grupo em uma igreja onde cabem 120 pessoas (1/3 da igreja). E ainda queriam microfones!
– qualquer erro do operador de som, e todos vão olhar para você. E da mesma forma que se comenta de tudo em um casamento (em especial noiva e mãe de noiva), qualquer erro no som é comentado por meses! É uma mancha difícil de se tirar do "currículo".

Claro que "apanhei" muito realizando essa quantidade de casamentos. Mas da experiência, aprendi muito, sei o que dá certo e o que dá errado. Algumas coisas que aprendi e posso ensinar:

– simplicidade. Evitar ao máximo os exageros. Eu, por exemplo, quase não uso módulos de efeitos em casamentos nem em eventos especiais, só se tudo estiver muito bem ensaiado antes. É menos uma preocupação.

– use equipamento 100% confiável. Quando o casamento é no seu templo, é muito mais fácil. Quando é no templo dos outros, um problema enorme é que você não conhece o equipamento (ou mesmo se conhecer, não está acostumado), não sabe o que está bom e o que está ruim, quais os "macetes", etc.

– chegar cedo, montar tudo cedo e ensaiar tudo antes, no próprio dia do casamento. Fazer uma "passagem de som" antes que a igreja começe a encher. Claro que isso não é feito sozinho, e é necessário estar com todos – cantores e músicos – presentes, o que nem sempre é fácil. Sempre tem aquele que chega 5 minutos antes do início. 

– orar, jejuar, madrugar. Sem Deus, nada somos!

Na verdade, se você quiser saber mais, há um artigo escrito sobre como cuidar de som em casamentos. Veja em: http://www.somaovivo.mus.br/artigos.php?id=54

Pois bem, vamos a história. Foi um casamento aguardado há meses. Um casal que já namorava à muito, resolveram "desencalhar". Ambos da minha igreja. De um lado, família grande, de outro a mesma coisa. Certeza de igreja cheia. Para piorar, o noivo é o responsável por tomar conta dos músicos e cantores de toda um conjunto de igrejas (chamamos de Comissão). Traduzindo em miúdos: um cara exigente, chato até, que sabe da importância do som para o louvor. E, conhecendo-o, sei que ele irá reclamar por anos de qualquer falha que ocorra no seu casamento.

Mas vamos aos problemas. Tudo começou com a escolha da igreja. Por causa do grande número de convidados, Escolheram se casar na maior igreja da Comissão. Cabe até 400 pessoas no templo. Mas é uma igreja reformada, com vários ambientes diferentes. Nave principal, "puxadinho", dois anexos laterais (um deles ocupados pelos músicos) e varandas. Em resumo, o ambiente é complicado. Se o som em um lugar está bom, em outro não está tão bom assim. Nesses casos, você tem que se preocupar com um deles (a nave principal – onde cabe mais gente) e torcer para dar tudo certo.

Um empresário membro da igreja investiu muito lá: gastou 10.000 reais, colocou caixas de primeira linha, colocou mesa boa (uma Alto L-12 com 8 canais e uma Staner UX-12), até amplificador Studio R lá tem. Chamou um profissional e montou tudo dentro de um armário de tijolo e cimento construído dentro da nave, lá na frente, a uns 5 metros do púlpito.

Os problemas começaram aí, na escolha da igreja. Eu não conheço aquele som. Só quem está lá todos os dias é que conhece. Não que seja ruim (ao contrário, é muito bom), mas em casamentos, estou acostumado a levar os meus equipamentos, coisa que conheço e confio 100%. Só que lá não dá para fazer isso. Os equipamentos ficam literalmente presos dentro do armário e não há margem de manobra. Ou se usa o que eles tem, ou se usa o que eles tem. Eu preferia levar minha mesa de som, mas não tinha como tirar a existente lá e colocar a minha. As ligações são todas embutidas, e não há como alterar nada, ainda mais sabendo que haveria culto no outro dia cedo pela manhã.

Assim, usar os equipamentos deles era a única solução. Nessa situação, o operador também deveria ser deles (o próprio da igreja), mas segundo o noivo, o rapaz de lá não conhecia os hinos, não quis cuidar do som, etc. E como os noivos são da minha igreja, não tive como fugir da responsabilidade.

Com isso, só me restou ir na igreja e tentar aprender ao máximo como as coisas lá são feitas. Estudei as ligações. Verifiquei o que dava para mudar, para mexer. Testei em um ensaio. Passei a conhecer os recursos, ver onde cada coisa estava. Fiz um mapa de ligações. Claro que não dá para mexer em tudo: a igreja não é a minha, e depois do culto eu teria que voltar tudo para o lugar. E também não deu para aprender tudo: as coisas são embutidas, e eu não consegui entender o esquema das saídas da mesa para os amplificadores. Tive que fazer como o operador local indicou e pronto.

Outro problema, seríssimo, é que o armário de equipamentos de som está muito mal posicionado. Lá na frente, próximo ao púlpito, logo à frente da bateria, ao lado do retorno (altíssimo, como sempre) do teclado. Simplesmente não se ouve nada da igreja. A "solução" deles é colocar uma caixa de som, idêntica às da igreja, aos pés do operador. Não gosto disso, pois nessa situação não se ouve a acústica da igreja. Mas é melhor que nada. A minha solução, por outro lado, foi chamar um amigo também operador de som, rapaz excelente e confiável, e coloquei ele lá atrás, se comunicando comigo via rádio. Ele seria meus ouvidos. A ajuda dele foi essencial.

Como já disse, eu gosto de usar o material que eu conheço e confio. Para esse casamento, para uso dos cantores e músicos, levei os meus microfones e até mesmo os meus cabos (tudo devidamente testado antes). Passei para cada um a forma de usar, passei para os músicos que eles deveriam ligar/desligar o microfone conforme fossem precisar (clarineta, duas flautas, dois violinos). Avisei ao grupo o cuidado com os microfones. Aos cantores solistas cuidado redobrado. Tudo 100%, espero!

Mas o microfone do púlpito, logo o microfone que o pastor iria utilizar, eu confiei no da igreja. Um Shure Earset (chique, não?!). Acho que fiquei "deslumbrado", e esse foi meu erro. Interessante que, eu fui montar o som do casamento às 11:00hs da manhã, e quando terminou, aproveitei para assistir o culto que seria realizado às 12:00hs. E nesse culto o microfone falhou! O som saiu todo entrecortado. Eu estava lá, eu presenciei o problema. Às 17:30 (o casamento seria às 19:30) eu marquei com o operador local e revisamos tudo. Comentei com ele do problema com o Shure, e testamos o microfone por 20 minutos, sem problema algum. Confiei que estava tudo bem, deixei-o no púlpito. Que erro.

Esse microfone me deu uma dor de cabeça enorme. Como ele havia falhado pela manhã, levei um Lapela AKG meu (e que confio) para usar, em caso de necessidade. Só que não o montei. No teste, o Shure funcionou bem mesmo… confiei que continuaria funcionando. Mas na hora que o pregador subiu ao púlpito para iniciar a cerimônia, exatamente o mesmo problema: o som saiu entrecortado. De imediato, fui montar o lapela AKG. Aproveitei o tempo que os noivos adentravam na igreja para instalar o meu AKG e levá-lo ao pregador o mais rápido possível.

Os noivos chegaram ao altar, eu terminando de montar tudo, o pastor então comenta – "Já vamos iniciar o culto, assim que o som deixar, né Fernando" – pensei comigo mesmo: "ainda bem que ele está sem microfone, só o pessoal daqui da frente que ouviu". Terminei de montar, ele colocou o lapela, soltei o mute do canal (que estava altíssimo, configurado para o earset), deu uma microfonia horrorosa, e finalmente acertei o volume e tudo transcorreu normalmente.

Tudo deve ter durado uns 2 ou 3 minutos, mas para mim pareceu uma eternidade. Não olhei nos olhos de ninguém, mas sabia que todos olhavam para mim (na verdade, estavam olhando a entrada dos noivos, mas me senti como se todos olhassem para mim). Fui muito frio: agi rapidamente, tentei não deixar transparecer emoção alguma, mas internamente sabia que uma tragédia tinha acontecido. Uma tragédia anunciada: eu vi o Shure dar problema. Levei um outro de confiança. Deveria ter usado. Mas para não ir contra o operador local (a igreja é dele, oras), preferi usar o que ele havia indicado. Literalmente, errei!

Diz uma das "leis de Murphy" que, se alguma coisa pode dar errado, vai dar errado! Eu fiz o "dever de casa" exatamente do jeito que ensino: levei material que eu conheço e eu confio, e o que era de lá eu fui antes para conhecer bem. Fiz planejamento, montei o rider, montei tudo pela manhã, testei, cheguei duas horas antes, testei tudo de novo. A única coisa que eu realmente não usei o meu (poderia ter usado) foi o microfone do púlpito. Confiei em algo que havia visto, poucas horas antes, dar problema. Não tem justificativa. Errei. Esqueci do Murphy. "Assassinei o casamento".

Nada adianta eu dizer que o restante do culto foi excelente (graças principalmente ao meu companheiro lá atrás). Nada adianta dizer que todo mundo elogiou o grupo de louvor, dizendo que os hinos estavam maravilhosos (menos pelo grupo – sem desmerece-los – e mais pelos microfones de coral que arranjei). Que não houve sequer uma microfonia. O som foi estragado lá no começo. Para mim, o culto foi perdido ali.

Para não dizer que foi tudo perfeito, eu também cometi um outro erro. Após a palavra, na hora das alianças, esqueci de soltar o mute do cantor solista. Perdeu-se as duas primeiras frases do hino. Uma pena. O problema é que na igreja são duas mesas: uma Staner embaixo (onde estava o microfone do solista) alimentava um canal da Alto (que tem Mute) que fica em cima. Acertei o microfone em baixo, esqueci de olhar em cima. Ficou feio, mas nada que não passe com o tempo. O problema do microfone do pastor não passa. Manchou meu currículo.

Toda história tem duas versões. Pessoalmente, sinto-me extremamente fracassado. Errei feio, a responsabilidade era minha. Não é culpa do microfone. Eu o vi dar problema, eu deveria ter feito alguma coisa. Eu tinha como fazê-lo. Não fiz. Muita gente veio perguntar o que tinha acontecido. Alguns (operadores de som também) curiosos, para aprender. Outros, para criticar mesmo. O próprio pastor que fez o culto desceu e falou – "É, Fernando, hoje sua sonoplastia não estava inspirada". Mas um diácono que estava presente no culto ao meio-dia, que presenciou o microfone falhar pela tarde e novamente à noite, me elogiou: "Fernando, graças a Deus que você trouxe outro para colocar no lugar. Eu vi o problema pela tarde, mas eu também vi vocês testando antes do culto, não dava para esperar uma coisa dessas". Pensei: quem bom, um que sabe a verdade, penas são os outros 399 presentes não. Mesmo assim, senti-me derrotado. Só dormi às 05:00h da manhã, pensando no meu erro.

Disso tudo, tiramos uma lição. Use sempre material que você conhece, você confia! Não conhece? Não use! Não testou? Não confie! E se não confiar, não use. Em eventos, ao menor sinal de problemas, abandone o equipamento e use outro no lugar. Ainda que seja um Shure Earset de R$ 4.000,00, não fique "deslumbrado" e ache que vai durar para sempre! Depois, com calma, em eventos não tão importantes como um casamento (ensaios, pequenas reuniões, etc), teste novamente o aparelho até criar novamente confiança no equipamento.

E que Deus tenha misericórdia dos meus ouvidos quando o noivo voltar da lua de mel.

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Revisado/reescrito em 05/Mar/2008

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